22 de set. de 2009

a quarta aula.

A profª Yara engordou. Isso foi o que eu pensei hoje pela manhã ao cruzar o meu caminho com ela.
Dona Yara foi apresentada como professora de matemática da 6º série do ensino fundamental da escola municipal Dep. Cyro de Albuquerque, exato ano letivo em que eu coincidentemente havia decidido renunciar às práticas aritméticas. Não me julguem tão preguiçosa antes de tomarem conhecimento de como esta disciplina havia infernizado a minha breve vida escolar até então.
Quantas foram aquelas professoras que disparavam fórmulas, teoremas, equações com a velocidade de um raio que com a mesma rapidez ricocheteavam o meu cérebro fantasioso e retornavam para seus conhecimentos tediosos e automáticos permanecendo para sempre intocados e isolados de qualquer possibilidade de penetrarem na memória sonolenta daqueles alunos de hálito dormido os quais estabeleciam como principal meta, durante aqueles quarenta e cinco minutos, reogarnizar o cronograma pedagógico a fim de alinharem as aulas vagas diárias pra depois do intervalo resultando na tão almejada dispensa pós-canjica.
E então veio a profª Yara com olhos esbugalhados, cabelos negros e grossos repuxados com um arquinho dentado de plástico, camisetas com retoques de cândida e gola esgarçada e aquela voz estridente de uma soprano de cordas reumáticas que, para decepção geral da galera, residia ao lado da escola e nunca sequer tencionou dar-nos o alívio libertário após as merendas.
Nem a sua voz, nem a sua paciência digna de inveja de personagens bíblicos como Jó por exemplo, me dissuadiam da decisão: eu não iria nem mesmo me esforçar em acompanhar aqueles símbolos absurdamente gregos tais como alphas (peixinhos de barbatanas abertas), tetas (de uma representação tão infame diante seu potencial subversivo) e pi's (a tal da casinha ao estilo colonial).
Para me livrar do tédio, comprava antes da primeira aula, um exemplar do jornal Notícias Populares. Então, assim que a Dona Yara adentrava no recinto, se deparava com manchetes do tipo: MA-MA-MATARAM O GA-GA-GUINHO, as quais me introduziram no concretismo literário.
Depois de um semestre a profª Yara finalmente conseguiu cair na graça geral, até mesmo o Renato-Coruja resolveu deixar seus sonhos matinais pra resolver teoremas de pitágoras no quadro. Mas eu continuava interessadíssima nas inventigações contra a quadrilha dos palhaços que, a custa de um pirulito, dopava as crianças e vendia seus rins no exterior por uma quantia superior ao custo cinco super nintendo com todos os cartuchos juntos. No milagroso silêncio durante as explicações, ouvia-se o farfalhar das folhas que eram manejadas cuidadosamente para que não vertessem sangue de suas páginas carníficas. Dona Yara, pelo menos uma vez por semana, se sentava ao meu lado e perguntava qual era o balanço semanal de rins infantis e depois me implorava para que desse atenção a isso depois do horário de suas aulas. A princípio achei a solicitação razoável, mas a decisão já tinha sido tomada: a matemática estaria para sempre banida de minhas ciências. Eu estava irredutível até um dia que D. Yara pareceu perder enfim seu poço farto de paciência.
Ao 26º rim pueril exportado, o jornal foi abruptamente tomado das minhas mãos. Enquanto D. Yara se dirigia ao lixo, não se ouviu o mínimo ruído fora aquelas folhas sendo raivosamente picotadas. Ela não disse nada. Eu, catatônica, não ousei nem inflar os pulmões em objeção. Após enterrar aquele jornal no lixo, a aula prosseguiu normalmente. Alguns que ousaram me olhar foram ineditamente repreendidos a gritos histéricos: "Rodrigo! Olha pra lousa! Dê atenção ao que merece atenção!"
E nesta manhã, olhando a Profª Yara naquele instante em que nos cruzamos, quis dizer: graças a senhora o meu cérebro permanece operante juntamente com meu sistema excretor, mas ela estava tão disforme da minha memória que tudo que pude fazer foi notar que de certo seu rim deveria estar comprometido resultando em alguma retenção de líquidos.

3 de set. de 2009

pick-up stuck.

você sabe aquela sensação de jogar pega varetas em que você precisa fazer algum movimento mas acaba percebendo que todas as varetas soltas já acabaram e absolutamente nenhuma delas parece estar numa composição digna o bastante para arriscar uma puxada sagaz por baixo? sabe quando você tem certeza de que qualquer mínimo toque vai causar danos irreversíveis àquela trama que se sustenta frágil pelo acaso displicente em que as coisas foram jogadas no meio das nossas vidas? você me entende quando eu falo que nenhuma cor se salvará depois dessa minha vez? você pode ter ideia de como estou apavorada com isso? você se deu conta de como a mais cuidada cautela se assimila a um trejeito paquidérmico? você percebe como cada um desses espetos se tornaram tão essenciais uns aos outros que de todo esse erro, esse foda-se, esse let it be, se tornaram em si o alicerce do nosso único acerto? você tem noção de como não quero derrubar tudo isso com o gesto trêmulo e vacilante? você consegue conceber o simples fato de eu não poder seguir adiante ou mesmo dar as costas a essa geometria tão afetada? não há formas fechadas nisso, vê? é tudo muito aberto num ângulo caótico e o restante dele é tudo daqui a frente. você se lembra de que já arriscamos a tangente e o único ponto de fuga se tornou a base de todas as outras peças? você pode precisar o quão delicada essa arquitetura se compõe de modo que qualquer vibração periférica pode nos quebrar em cores distintas e distantes como se este edifício estivesse já viciado à espera de sua ruína iminente? você reparou como cada divergência dessas retas se tornou o nosso ponto-de-equilíbrio e isso só converge ao nosso favor quando continuamos prendendo a respiração diante do próximo deslocamento alheio? eu quero ficar. e então algo começa a se desfazer quando você repete:

_ É a sua vez.