26 de jul. de 2011

Nota sobre Maria.

Maria morreu durante essa madrugada. Ao longo dos seus sessenta e nove anos e cinco meses de vida, Maria teve três filhos: Pedro, Mateus e Arnaldo, e dois homens: José e Reinaldo. O primeiro, como todos sabem, foi aquele que fugiu e o segundo, como poucos percebiam, foi aquele que ficou.
Maria estudou pouco e nunca trabalhou fora. Mãe e esposa dedicada, passava o dia inteiro limpando a casa que nunca estava limpa. Esperava que os filhos fossem honestos e corretos, e eram. Todos trabalhavam e ajudavam em casa com algumas contas. Arrastava as pantufas, que ganhara de Arnaldo no penúltimo natal, pelos quatro cômodos da casa e, ao dormir, arrumava-as perto da cama. Não precisava de sapatos. Chegava a passar meses sem sair na rua. Não era dada as fofocas com vizinhas. Tinha três filhos pra criar e os criou. Quando precisava de alguma mistura pro almoço, avisava Reinaldo que sempre passava na venda e arrumava algumas batatas, cenouras e carne moída.
Nessa manhã a casa estava quieta. Só foram se dar conta que Maria morrera na hora do almoço, quando estavam todos com fome.

6 de jul. de 2011

cena estática.

No meio do meu quarto há uma lagartixa morta. Há uma lagartixa morta no meio do meu quarto. Morta, no meio do meu quarto, há uma lagartixa. Largatixa há, morta, no meio do meu quarto. No meu quarto, há uma largatixa meio morta. No meu meio, há um quarto de lagartixa morta. Há uma lagartixa no meio do meu quarto, morta. Há, no meio da morte, uma largatixa no meu quarto. Há um quarto de morte no meio da lagartixa.

A lagartixa permanece no meio do quarto, morta.

17 de jun. de 2011

senso de movimento.

E quando todos ouviram ofegantes as explosões de aplausos, agradeceram se prostrando ao deleite do público que respirara a cada estalo dos músculos, as extensões dos dedos dos toques dos suores, a respiração presa do êxtase contido na suavidade de cada articulação que se torce rígida ao sublime pisar. O peito que batuca qualquer ritmo, qualquer jazz, qualquer bolero, qualquer gole da saliva que se seca por debaixo da língua, os dentes que rangem, os olhos atentos e o baque pára baque pára baque pára baque: precisão trêmula. Dilata o movimento e toca o outro. o outro é tocado. Pequena órbita de corpos e celestes colisões de esforços. Cai no chão e reverbera a reza ao mar: rosas brancas e comunhão - os braços que dizem sim ao encontro e repelem-se pra no próximo compasso se atraírem: ressaca de ossos duros, macumba nos pulsos, nos pés que giram, giram, giram. Equilíbrios em colapso. A transa, o som, eles. Desloca-se do centro e sai.

4 de jun. de 2011

é só algo lá dentro.

Quando aos sábados de manhã sinto uma vontade enorme de ligar. chamar pelo telefone e dizer algo do tipo: "como tem sido isso tudo pra você?" - olho para o telefone imóvel em cima da estante e já antecipo o sentimento: "O que é isso que estou fazendo?". Entende? Porque às vezes não é nada, as coisas não tem sido nada pra ninguém. Aí eu penso nas ruas, em relógios de ponto, catracas de ônibus, senha de vale alimentação, fila de bancos, cadastros no site de emprego, contas e dígitos e absolutamente nenhuma poesia nas marteladas semanais do prédio em construção logo aqui do lado. Respira, vai pra pia lavar a louça, tire as migalhas do café da mesa para poder almoçar com mais dignidade, acerta o tempo do despertador e ouça uma canção qualquer do rádio que fale de um amor tão distante como trama de novela de algum canal de siglas da tv aberta. "e como tem sido pra você?" - seria a pergunta: é como tem sido pra qualquer um. troca o canal que traz as notícias de esporte e constrói um caminho mais rápido para os correios: remessa de documentos para provar o meu nome na portaria do prédio comercial: nunca estive aqui e eles nunca mais irão me ver quando subir no ônibus que quase perdi. Meu olhar se deteve em alguma vitrine: liquidação. Volto pra casa para recolher roupas e me sento na ponta da cama amassada: serras e montanhas de desassossego nos papéis espalhados pelo chão. Uma aranha mora por aqui, mas nunca a vi além da formiga morta que caiu na armadilha mais óbvia de todos os tempos. O drama mais óbvio de todos os tempos. "E como tudo isso tem sido pra você?" - pergunta de gente mal disposta. Entra no quarto, liga a TV que a vida passa e bate um vento lá fora.

7 de mar. de 2011

rivotril.

ainda que sem perfume
era flor.

27 de fev. de 2011

hipotética do caos.

era como se eu estivesse contra o luz e, entre nós, campos enormes de girassóis. veria da sombra, as pontas iluminadas das pétalas voltadas para luz. escreveria falsos palíndromos que, diante do espelho, deflagrariam um adeus quando eu fosse o teu mesmo pólo no abraço de boas vindas. faria uma exótica dança mística de braços e pernas chamando tempestades orientais no seu descampado cristão. a enxurrada que viria da terra e o meu guarda-chuva mais normal que não te caberia enquanto ofereceria a pele enxuta: rastro de rosto que ainda não chorou. dou com a maior segurança, meu bem, a hesitação de tudo que se aproxima de mim com tudo que não pode ficar e permaneceria a eternidade que uma bruta flor respira - respingando suores para aquele que não tem tanta sede assim.

eu te diria ainda da lógica do universo que se quebrou nas lentes dos meus óculos acrescentando que era uma flor só.