De: Usuário usuário@dominio.com.qualquer
Para: Outro usuário outrousuário@dominio.com.qualqueroutro
Data: Ontem
Assunto: (sem assunto)
Postado por:
domínio.com.qualquer
“Ya somos en la tumba
las dos fechas
del principio y el término, la caja,
la obscena corrupción y la mortaja,
los triunfos de la muerte y las endechas.
No soy el insensato que se aferra
al mágico sonido de su nombre;
pienso con esperanza en aquel hombre”
(Jorge Luis
Borges)
Suspeito agora o espanto com que receberia essa
mensagem. Mais espanto ainda seria me imaginar aqui, a essa altura em que nada
acontece, tentando acompanhar a velocidade com que tudo me deixa pra trás –
havia um tempo em que eu parava para observar, mas hoje eu paro: parei quando a
caneta ia pra frente e pra trás como uma espécie de psicografia de um eletro
encefalograma: a precisão me escapa em reflexos de um outro que foi preenchendo
insuspeitadamente os meus movimentos, os meus humores, os meus bons dias que
mastiguei no fundo da língua frouxa que bate e volta no céu da boca enquanto ofendo
vizinhos e espanto os zumbidos agudos de crianças que rasgam o que ainda
insiste ouvir. Entenda, O., agora não quero ouvir mais nada pois não há som que
chame aquele que estava aqui antes deste outro chegar. Se me pedem licença não
pedem para esse que nestas linhas parece falar, educadamente ou não, eles se
dirigem a alguém que teimou em aparecer no último ato – Ato: deixe-me dizer do
que não acontece ao fim dele. Já devo ter mencionado algo algum dia das coisas
que não acontecem, de ausências, de insolitudes, do movimento que não se
realiza, do corpo no fundo de uma cama, de um rosto no fim da memória: Era o
meu que outrora você havia reconhecido como quem entra numa casa vazia e faz
erguer a poeira de peles e toques de corpos que já se perceberam e com força
violentaram o encontro.
E hoje eu não te encontro mais.
Então, os finais de semana costumavam ser piores.
Eu poderia te encontrar em todas as esquinas da cidade, eu poderia te encontrar
num posto de gasolina antes da nossa viagem, numa farmácia para alguma coisa
acabar com a nossa ressaca, num restaurante mais caro quando você tomava a
frente para pagar o meu almoço e eu, com uma espécie de falta de graça
esperada, te dizia que pagaria depois: eu nunca pagava e você coagia com essa
forma de me livrar do embaraço de depender de você, eu dependia do modo como
você me carregava pela cidade, eu dependia do seu sorriso quando de longe nos
víamos e você e seus filhos e seus vizinhos e seus empregados e seus tios seus
atos insuspeitos sua carreira seu casamento sua verdade que todos sabiam
debaixo dos olhares a mim: eu era a verdade, a carta interceptada, o telefonema
grampeado, a sua biografia não autorizada, as conversas baixas nos cantos dos
bares, o deleite da confirmação mútua dos fuxicos dos teus colegas de trabalho,
a insônia da tua família, as desculpas tortas do teu sumiço. Se quebrassem o
teu silêncio ouviriam o meu nome que chamaria num sonho agitado debaixo da tua
língua que, mais cedo ou mais tarde, iria te denunciar no ato falho de um café
da manhã:
“Hoje eu sonhei comigo e eu estava só. Havia você
me garantindo uma samambaia na nossa varanda, balanço de rede, a mão suja da
terra da nossa horta, o beijo na testa dorme tranqüilo meu bem e sonhava com a
gente e ali você preocupada com os seus filhos que eram seus pais e eu falava
com você e você olhava abruptamente para o outro lado da rua de uma cidade do
leste europeu dessas que a gente nunca imagina estar como Budapeste Bucareste
Bratislava e ninguém entendia o que eu falava: reclamava o seu nome que já não
era o mesmo naquele idioma tão longe de ser romeno inglês húngaro latim
provavelmente alemão que também não sei falar e via a cor da tua blusa vermelha
pelos monumentos bege e você sempre estava de costas atravessando a rua para
onde tinha olhado e por mais que eu rodasse a cidade, que agora era aquela que
eu crescera, eu voltava para a calçada que você deixava com a sua blusa amarela
e o teu rosto que não era teu, era meu e acordava assustada fitando o teto, um
buraco perto do bucal da lâmpada, uma mancha atrás da porta e as coisas
exatamente como as tinham deixado antes de dormir: sapato virado, toalha na
porta do armário e assim, antes mesmo da luz invadir o quarto, eu ia
decodificando meus passos antes de ir para a cama e alguma coisa me diria que
você esteve lá sem deixar sinais no desarrumado que a presença faz. O sonho que
esqueço na pia antes do café.”
Há um grande equívoco no que se entende por vida,
O., e você, mais do que ninguém, entenderá do que falo neste momento. O que
seria falar de vida para a gente que só morre? A vida não é o estado em que a
gente se mexe inspira expira fala engole pisca treme dói força geme estrala
expande retrai dobra recolhe. A vida, O., é o som do teu nome letra voz ar que
eu vibro no teu ouvido: eu você e precisamente agora e ontem e antes e tudo:
nós quando você só vive se eu te chamar na marca do cigarro que você fuma, no
caminho que você faz todo laico dia, no livro de receitas guardado na última
gaveta de onde tirávamos o gosto latente dos nossos jantares, no rótulo do
vinho de concessões às verdades que sai da boca tinta vinagre acre no pesar do
que se lembra no dia seguinte, nos convites que você atende: O. e Família e eu
te esperando voltar.
Hoje pela manhã esqueci um detalhe do teu rosto e
agora eu começo a falar da morte.