13 de jan. de 2017

A rua que não é essa.

e então você notou que aquela rua em que ontem tombávamos tortos foi tomada da cor que nos denuncia sujos: corpos estranhos que empedra o fluxo dos transeuntes desta clareza tão nítida e tão sólida e tão certo é que fazem dela, esta rua, o meio e não o fim de suas procissões cotidianas e ainda somos ateus. esperemos, então, que a rua em plena força de contração nos aborte em abrigos subterrâneos caso não tenhamos força de nos incrustarmos nos seus cantos, como camuflagem mancha pixo margem e o cheiro fermentado grudando no passo tonto a que chegamos no primeiro indício que não pertencemos mais ao reduto do jornaleiro que nos olha desconfiado ao evitar a graxa nas fendas cutâneas de esquinas esquivas, da epiderme sedenta do nosso gole, da nossa fuga, de um outro lugar para longe desse mesmo em que pessoas chegam a algum lugar, se cumprimentam e continuam a nos pular: poça de lama: indício que há de ter chovido e que ninguém se molhou conosco.

penso aqui, meu caro, quantas ruas eu precisaria vencer até chegar para mais perto de um lugar qualquer, quantas vilas cravadas no meio de quilômetros e distâncias até que se reduziram a passos de quem certo conhece o caminho para as visitas das tardes e os berros da noite, quantos objetos esquecidos na tua cidade para me fazer voltar pelo mesmo caminho tão diferente: _ Bom dia, Sr. Roberto! Tenho certeza que se bater nesta porta um senhor de cara espremida abrirá o mau humor de quem é importunado por um estranho em lugar do seu reconhecimento tão amigo e eu imaginaria ter demorado trezentos e cinquenta anos pra voltar a este mesmo lugar.

talvez só tenhamos passado por três tons desse céu para que a máquina da cidade comece a articular seus ruídos monofônicos, para que sejamos esquecidos a cada conversa no hall de entrada dos edifícios a pleno vapor e neste instante as placas só conseguiriam indicar o quanto estamos perdidos de nosso pouso.

deslocaram uma pedra que se soltou de algum muro e passou a não integrar mais nada além de uma forma tão singular e desfuncional de sua própria ruína. O sol agora se põe sobre nossas cabeças enquanto, recolhidos, esperamos outra chance de enfrentar os  suores de quem saiu e não se lembra mais como voltar para o cheiro fresco dos jardins em que crescemos, dos panos do vestido limpo dela, o tilintar de copos e talheres nas reifeições em comunhão, risos no cômodo ao lado, domingos lentos e calmos e a certeza de que seremos felizes todos dias juntos, amém.

 e por mais longe que alcancemos, meu bem, é pra trás que olhamos e vemos que nos deixamos a cada passo sem qualquer vestígio. nos distraímos com as luzes e com a vontade de permanecer sempre até o nosso encontro na avenida que atravessei e te vi tão de longe voltar sozinho. continuei.



(originalmente publicado no projeto: uma espécie de bazar)


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