14 de jan. de 2017

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De: Usuário usuário@dominio.com.qualquer

Para: Outro usuário outrousuário@dominio.com.qualqueroutro

Data: Ontem

Assunto: (sem assunto)

Postado por: domínio.com.qualquer
“Ya somos en la tumba las dos fechas
 del principio y el término, la caja,
 la obscena corrupción y la mortaja,
 los triunfos de la muerte y las endechas.

 No soy el insensato que se aferra
 al mágico sonido de su nombre;
 pienso con esperanza en aquel hombre”

                                (Jorge Luis Borges)


Suspeito agora o espanto com que receberia essa mensagem. Mais espanto ainda seria me imaginar aqui, a essa altura em que nada acontece, tentando acompanhar a velocidade com que tudo me deixa pra trás – havia um tempo em que eu parava para observar, mas hoje eu paro: parei quando a caneta ia pra frente e pra trás como uma espécie de psicografia de um eletro encefalograma: a precisão me escapa em reflexos de um outro que foi preenchendo insuspeitadamente os meus movimentos, os meus humores, os meus bons dias que mastiguei no fundo da língua frouxa que bate e volta no céu da boca enquanto ofendo vizinhos e espanto os zumbidos agudos de crianças que rasgam o que ainda insiste ouvir. Entenda, O., agora não quero ouvir mais nada pois não há som que chame aquele que estava aqui antes deste outro chegar. Se me pedem licença não pedem para esse que nestas linhas parece falar, educadamente ou não, eles se dirigem a alguém que teimou em aparecer no último ato – Ato: deixe-me dizer do que não acontece ao fim dele. Já devo ter mencionado algo algum dia das coisas que não acontecem, de ausências, de insolitudes, do movimento que não se realiza, do corpo no fundo de uma cama, de um rosto no fim da memória: Era o meu que outrora você havia reconhecido como quem entra numa casa vazia e faz erguer a poeira de peles e toques de corpos que já se perceberam e com força violentaram o encontro.

E hoje eu não te encontro mais.


Então, os finais de semana costumavam ser piores. Eu poderia te encontrar em todas as esquinas da cidade, eu poderia te encontrar num posto de gasolina antes da nossa viagem, numa farmácia para alguma coisa acabar com a nossa ressaca, num restaurante mais caro quando você tomava a frente para pagar o meu almoço e eu, com uma espécie de falta de graça esperada, te dizia que pagaria depois: eu nunca pagava e você coagia com essa forma de me livrar do embaraço de depender de você, eu dependia do modo como você me carregava pela cidade, eu dependia do seu sorriso quando de longe nos víamos e você e seus filhos e seus vizinhos e seus empregados e seus tios seus atos insuspeitos sua carreira seu casamento sua verdade que todos sabiam debaixo dos olhares a mim: eu era a verdade, a carta interceptada, o telefonema grampeado, a sua biografia não autorizada, as conversas baixas nos cantos dos bares, o deleite da confirmação mútua dos fuxicos dos teus colegas de trabalho, a insônia da tua família, as desculpas tortas do teu sumiço. Se quebrassem o teu silêncio ouviriam o meu nome que chamaria num sonho agitado debaixo da tua língua que, mais cedo ou mais tarde, iria te denunciar no ato falho de um café da manhã:

“Hoje eu sonhei comigo e eu estava só. Havia você me garantindo uma samambaia na nossa varanda, balanço de rede, a mão suja da terra da nossa horta, o beijo na testa dorme tranqüilo meu bem e sonhava com a gente e ali você preocupada com os seus filhos que eram seus pais e eu falava com você e você olhava abruptamente para o outro lado da rua de uma cidade do leste europeu dessas que a gente nunca imagina estar como Budapeste Bucareste Bratislava e ninguém entendia o que eu falava: reclamava o seu nome que já não era o mesmo naquele idioma tão longe de ser romeno inglês húngaro latim provavelmente alemão que também não sei falar e via a cor da tua blusa vermelha pelos monumentos bege e você sempre estava de costas atravessando a rua para onde tinha olhado e por mais que eu rodasse a cidade, que agora era aquela que eu crescera, eu voltava para a calçada que você deixava com a sua blusa amarela e o teu rosto que não era teu, era meu e acordava assustada fitando o teto, um buraco perto do bucal da lâmpada, uma mancha atrás da porta e as coisas exatamente como as tinham deixado antes de dormir: sapato virado, toalha na porta do armário e assim, antes mesmo da luz invadir o quarto, eu ia decodificando meus passos antes de ir para a cama e alguma coisa me diria que você esteve lá sem deixar sinais no desarrumado que a presença faz. O sonho que esqueço na pia antes do café.”

Há um grande equívoco no que se entende por vida, O., e você, mais do que ninguém, entenderá do que falo neste momento. O que seria falar de vida para a gente que só morre? A vida não é o estado em que a gente se mexe inspira expira fala engole pisca treme dói força geme estrala expande retrai dobra recolhe. A vida, O., é o som do teu nome letra voz ar que eu vibro no teu ouvido: eu você e precisamente agora e ontem e antes e tudo: nós quando você só vive se eu te chamar na marca do cigarro que você fuma, no caminho que você faz todo laico dia, no livro de receitas guardado na última gaveta de onde tirávamos o gosto latente dos nossos jantares, no rótulo do vinho de concessões às verdades que sai da boca tinta vinagre acre no pesar do que se lembra no dia seguinte, nos convites que você atende: O. e Família e eu te esperando voltar.


Hoje pela manhã esqueci um detalhe do teu rosto e agora eu começo a falar da morte.

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